por Fernanda Paradizo
Sou analista de perfil comportamental e como boa “dominante”, logo após uma decisão, já planejo várias ações como “o que fazer para alcançar o quanto antes minhas metas”. Era sedentária até 2013. Até então já tinha tentando correr algumas vezes, mas nada consistente. Em 2014, numa viagem a trabalho para a Disney, vi meu chefe correr o Desafio do Dunga. Sem correr nem 5 km, quis fazer o Desafio. O primeiro ponto foi garantir a inscrição no site (março de 2014). Já estava conseguindo correr 10 km. Depois de inscrita, sabia que tinha que aumentar minhas distâncias. Treinava no parque da cidade e conheci um grupo de corrida, a KMC, que me deu um ciclo social e apoio para correr. Passei literalmente a fazer todas as corridas de final de semana. Depois de duas meias no Rio, uma em julho e outra em agosto, em setembro, corri mais uma meia, em Punta del Este, onde fiz meu melhor tempo (sub 2h). Uma semana depois viajei para a Europa e coloquei Rock’n’ Roll Marathon de Lisboa como meta. Antes da prova, estava na Dinamarca visitando um amigo. Saí para correr enquanto ele trabalhava e fiz um longão sem perceber. Eu me perdi e, quando consegui voltar para casa, já tinha corrido 36 km. Em Lisboa, fiz uma corrida mental e uma coisa que sempre me ajudou: me diverti tirando fotos e filmando ao longo da corrida. Meu lema em 2014 era “work hard, play hard”. A partir daí, se o dinheiro cabia na parcela, eu ia. E depois ganhava mais dinheiro e gastava com viagens de corrida. Hoje tenho uma mentalidade diferente.
MAJORS BRAZIL: Você fez sua primeira Major em 2016 em Berlim e dali em diante foi numa sequência curta entre elas, já emendando Chicago e Nova York em 2016 e Tóquio, Boston e Londres em 2017. Ou seja, em 7 meses já havia completado as 6 Majors. Como foi conciliar tantas provas e viagens em tão curto espaço de tempo?
Eu dei o comando que ia dar certo. Afinal, não ia gastar o dinheirão todo com a viagem e voltar sem a medalha. Sempre fui muito disciplinada quando determinava a fazer algo. Tanto que 2014 e 2015 corri quase todas as provas de rua em Brasília. Mas uma coisa que fazia era cumprir o treino e ainda fazia crossfit, que me deu um excelente condicionamento físico. Eu não fazia muitas coisas além de correr, treinar, trabalhar e viajar. Era legal, mas comecei a perceber que era disfuncional. Eu buscava aprovação das pessoas para me sentir importante. Corri a primeira Major em 2016. E dei tantos “tiros” para fazer as Majors que todas acabaram saindo de uma vez.
MAJORS BRAZIL: Falando um pouco de Boston, você foi por agência e não por índice. Foi algo que aceitou “para você mesma” logo de cara? Ou seja, se quisesse incluir a legendária Boston no seu currículo, teria que recorrer a agência ou mesmo caridade? Muitos corredores não aceitam Boston sem índice. Sofreu algum preconceito por isso?
Em abril de 2014, época da maratona, fui para Boston para visitar uma amiga, que morava a uma quadra da largada da prova. Foi um ano depois do atentado. Senti aquela energia e por um instante quis estar ali correndo. O clima “Boston Strong” era de arrepiar. Foi ali que decidi que queria, mas nem sabia como. Nossa mente pode ser nossa maior força ou nosso maior sabotador. Naquele momento eu poderia escolher esquecer da sensação e me manter na ideia de que Boston não era para mim. Afinal, só os corredores mais rápidos estão ali. Que ousadia a minha querer! Mas ao longo do processo fui correndo e angariando experiências. Maratona para mim é oportunidade de autoconhecimento, superação, mas antes de tudo diversão, troca de culturas, sorrisos e energia. Para alcançar algo, temos que abrir leque de possibilidades para descobrirmos em qual nos encaixamos. Em todas as Majors, existem esse leque: índice para a prova, sorteio, agência credenciada ou caridade.
Aprendi que preconceito vem da nossa cabeça, por uma idéia coletiva que nos é imposta. Sabendo que havia preconceito entre os corredores mais rápidos, pensava: “Quais são as minhas possibilidades para realizar essa prova, já que ela faz parte da jornada que terei que percorrer para a medalha maior?” Foi assim que conheci a Kamel em 2014. Mandei um e-mail e esperei. Entrei na fila e, mesmo pagando, sabia que seria difícil uma vaga. Mas sabia também que por índice não iria, pois nunca tive biotipo “padrão” e também não estava disposta a ficar treinando muito mais por tempo. A corrida era meu lazer, não minha profissão. Vi muita gente se lesionando por querer ir muito além com o corpo. Eu ia “devagar e sempre”. Só fui ter acesso à vaga em 2017, e foi fantástico para mim. Mentalizei já concluindo as 6 Majors. Nunca fui sortuda, nunca fui rápida, mas sempre acreditei que de alguma forma eu poderia ser uma “Six Star”.
MAJORS BRAZIL: Além da dificuldade de conseguir uma vaga para Boston, para completar as Majors, teve que correr atrás de uma inscrição para Londres, que você foi por caridade. Como foi o processo?
A maior dificuldade foi realmente Londres. Entrei no site de todas as empresas de caridade e me inscrevi em 2016. Próximo ao meu aniversário de 2017, tive a notícia da desistência de um voluntário por lesão. Tomei um susto com o valor, que era em libras, mas resolvi seguir adiante. Na época, eu tinha vergonha do dinheiro que ganhava em relação às pessoas de meu convívio e de usufruir disso. Então não sofri muito em doar. A parte financeira estava controlada. Paguei tudo do meu bolso. Fiz a dobradinha famosa: na segunda-feira Boston e, no domingo da mesma semana, Londres. Já entrei em contato com a empresa da WMM para sinalizar que seria minha última prova. E vou contar um segredo: como queria tirar a foto com todas as medalhas, corri a maratona com as cinco no meu corpo. Conheci outros voluntários e foi uma experiência incrível. Conhecer a causa pela qual você corre é de arrepiar… te da um gás. Algumas coisas não têm preço. Quando completei as Majors em Londres, um amigo me alertou: “Você faz parte das poucas mulheres com esse feito”. Sabe qual era meu defeito? Eu não celebrava essas conquistas. Quando vejo lá em casa as medalhas, as fotos, percebo que fui forjada ao longo dessa linha azul das maratonas.
MAJORS BRAZIL: Como descreveria hoje cada uma das Majors que participou?
Cada prova tem sua beleza. Berlim por toda a história cultural e por ser uma prova plana. Chicago foi um prova bem funcional, com clima ameno e todas as atrações na cidade, como teatros e o Bean, aquele “grande olho”. Nova York é uma prova mais clichê, com largada perto da estátua da liberdade. Corri na época das eleições americanas e havia várias plaquinhas com trocadilhos da população ao longo do caminho. Passamos por tantos bairros e culturas variadas. Tóquio é algo totalmente diferente e acredito que essa foi essencial ir com a Kamel. Numa terra em que não entendo nada do que dizem, o sorriso das famílias batendo em nossa mão enquanto corremos não tem preço. Japão é um país de cultura, educação e história incríveis. Amei correr e viajar para lá. Boston tem essa elitização dos corredores mais rápidos, mas fiquei bem longe dos últimos. As provas nos EUA são grandiosas. Gosto muito da forma prática deles ao lidar com tudo. E, claro, o clima de nacionalismo na cidade é incrível! Tive oportunidade de correr a edição comemorativa de 50 anos da participação feminina na prova e ainda sair na capa da revista da corrida. Foi dupla honra. Sempre que viajo gosto de correr com a bandeira do Brasil. Amo honrar nosso país. Londres também foi muito especial. Correr pelos monumentos, tirar fotos, fazer farra com o pessoal e receber a grande mandala.
MAJORS BRAZIL: Como estão seus treinos atualmente? Tinha alguma prova para 2020 que teve que ser adiada? Como foi treinar na pandemia para você?
Minha última maratona foi em 2018. Decidi gerenciar melhor o tempo com os vários cursos que estava fazendo. Então não tinha nenhuma prova agendada. Mas fiquei muito agoniada com a pandemia e comi muito. Acredito que a maioria dos corredores identifica vícios que foram substituídos pela corrida. Se você não lida com eles, eles voltam. Precisei trazer um momento de compreensão de meus sentimentos. Só fui ter coragem de voltar a treinar em setembro. Engatei um programa de treinos, nutrição e acompanhamento médico (estava obesa e com vergonha de mim ao mesmo tempo me cobrava muito). Decidi colocar em prática uma frase do Artur Ashe: “Comece onde está, use o que você tem e faça o que puder”. Agora reforcei que a equação da saúde é treino constante e companhia que agrega nos resultados que você quer alcançar.
MAJORS BRAZIL: O que espera para 2021? Já tem alguma prova programada?
Logo após concluir as Majors já tracei a nova meta: uma longa distância em cada continente. Em 2018, foi no Egito, fazendo 4 voltas de 10 km em Luxor na Sexta-feira Santa deles, em janeiro. Falta Oceania e Antártida. A próxima tão logo eu possa tirar férias (sou servidora pública e acabei de assumir carreira militar) , a rota será a Maratona de Sidney, na Austrália, talvez em julho de 2022. Como estive parada das corridas, até chegando a ficar sedentária, neste ano de 2021 retomarei as corridas de longa distância. Lembrei da sensação de liberdade e quantas idéias me vêm ao longo da jornada.
MAJORS BRAZIL: Um aprendizado que gostaria de passar adiante?
Para quem quer correr as Majors, saiba: eu também sou uma pessoa comum como a maioria, ordinária como você, mas decidi pagar o preço da disciplina, o preço do sucesso. Você também pode ir além e se desafiar. Procure mentores, peça ajuda e persevere. Seu destino também é o sucesso.