Comecei a correr quando me mudei para São Paulo. Eu tinha ou via três opções: ficar trabalhando até tarde, sair para beber cerveja e comer pizza com os amigos ou me matricular numa academia e passar o tempo. O objetivo, nas três hipóteses, era esperar o trânsito paulistano aliviar.
Me matriculei numa academia e comecei a fazer esteira. Tinha uma TV para cada esteira e cada bicicleta. Comecei correndo 1 sofrido KM. No final da primeira semana eu já conseguia correr 4KM. Foi instantâneo o aumento do prazer e eu já conseguia correr 6KM. Passei a ir pela manhã, bem cedinho, me dava aquela disposição para o trabalho e à noite eu voltava. Já estava então correndo entre 10 e 12KM por dia.
Vieram as dores na panturrilha e em outros músculos e aí descobri que fazer musculação, que nunca gostei nem gosto até hoje, era fundamental. Encontrei meu primeiro personal.
Iniciei em maio e aí descobri que tinha a Volta Internacional da Pampulha em BH, onde minha família se manteve morando e eu ia todo final de semana. Me inscrevi para ver o que é que dava.
Como eu continuava jogando minha pelada aos sábados (a academia era só de 2ª e a 5ª), faltando uma semana para a prova quebrei o dedo mindinho da mão direita. O médico me disse para não correr. Não ouvi. Corri com gesso no braço, caiu uma chuva, o gesso ficou aquela coisa. Na segunda eu estava todo doendo, com o gesso desfeito e no consultório para poder refazê-lo.
Uai, eu tinha corrido 18KM, uma Meia Maratona eram só 3KM a mais. Vou encarar, me inscrevi na Meia do Rio. Uma maravilha! Correr na Cidade Maravilhosa, na orla, foi tudo lindo indescritível. Foi difícil demais completar porque o horário de largada era da emissora de TV e largar já com 28 graus não foi fácil. Enfim, sem choro, completei minha primeira Maratona, fiquei doendo até a quarta-feira, mas foi uma delícia.
Gente… olha só, Meia Maratona são 21KM, então uma Maratona era o dobro. Será que eu dou conta? Conversei com o meu personal, outro por sinal e de BH, que se tornou um grande amigo e estamos juntos há 20 anos. Comecei a treinar, eu correndo e ele atrás de bicicleta. Fui amentando o volume, vendo que aguentava o aumento da carga. Me inscrevi então para minha 1ª Maratona. Paris né gente porque se é para fazer uma prova deste tamanho, tem que ser num lugar que eu nunca me esquecerei.
Fui fazendo treino a treino, planilha a planilha, semana a semana. No dia que tínhamos que dar 2 voltas na Pampulha, meu maior longão de 36KM, completei inteiro a primeira volta. Comecei a segunda e fui até o KM e fui até o KM 12, já tinham sido 30KM. Virei para o Evandro, meu personal, e disse a ele: “Evandro, olha só. Aqui na Pampulha nós temos uma coisa muito legal. Se você correr 9KM vai ter que correr outros 9KM para chegar ao seu carro porque táxi nenhum irá te pegar todo suado. Então eu vou fazer o seguinte. Não vou completar a 2ª volta. Vou voltar daqui porque assim eu volto mais 12KM e já completo os tais 42KM. Será a minha primeira Maratona e eu gostaria de corrê-la ao seu lado, porque você é o cara que mais se dedicou e me preparou.
Eu esqueci de dizer uma coisa muito importante: isso era no ano de 2006. 2 anos antes, no mês de junho, ainda jogando minha pelada de final de semana, eu rompi o LCA. O médico me disse que seria difícil eu voltar a correr ainda naquele ano. 42 dias após a cirurgia eu saí sozinho e consegui dar uma volta na Pampulha. Voltei ao consultório, ele me perguntou como é que eu estava, se já tinha assimilado que não poderia correr a Volta da Pampulha daquele ano. Falei com ele que sim, que não teria problemas, que eu aceitaria, mas para ele ficar sabendo que no final de semana anterior eu já tinha dado uma volta.
Ele se assustou, me xingou, mas sorriu em seguida. Quando foi apresentar sua dissertação de Mestrado, ele abordava sobre reconstituição do LCA usando um tal método, ele apresentou a minha foto na cirurgia, uma outra nossa durante a consulta e uma terceira, que vocês logo saberão qual foi.
Então chegou o dia da viagem. Fomos eu, minha esposa e companheira de sempre nas corridas, levando também a minha irmã.
Eu queria completar aquela prova em 4h30m e completei em 4h32m. Não era nem nunca seria o corredor mais rápido, mas com certeza sempre fui disciplinado e planejado. Então, meta traçada, meta atingida.
Agora eu era um maratonista. Tirei a foto e enviei para o ortopedista. Aí ele acrescentou na sua apresentação.
Voltei, desanimei porque já tinha batido o objetivo. Aí resolvi voltar a Paris no ano seguinte. Foi bom, mas não como a anterior. Eu queria continuar correndo, mas em lugares diferentes. Iria fazer um intercâmbio em Toronto. Fiz escala em Chicago e corri a Maratona de lá. A mais quente da história, morrendo um bombeiro, o pessoal interrompendo, pedindo aos corredores para pararem. Completei, foi sofrido.
Na semana seguinte, já em Toronto, descobri que teria a maratona de lá. Me inscrevi e completei minha 4º Maratona, uma semana depois da 3º.
E o tempo foi passando, eu corri Buenos Aires, Rio, Porto Alegre… descobri o tal Desafio do Pateta. Gente, eu não conheço a Disney. Vou chamar minha esposa e os meninos. Vamos? Inscrição feita, diversão garantida.
Ah, depois veio o Desafio do Dunga. Claro que irei fazer. E fui assim, de Maratona em Maratona…
Os 50 anos foram se aproximando e eu coloquei algumas coisas para fazer antes dos 50. Era maio, junho de 2016 e os 50 viriam em julho de 2018. Aí pensei… eu bem que poderia conseguir ser um Major, né!
Me inscrevi para o sorteio em Nova York e já tinha sido sorteado. Então pronto, Chicago e Nova York já estariam completadas. Vou me inscrever para Londres. Ah, essa aí só com doação. Ah é, ótimo, vamos ajudar e ser ajudado. Fiz Londres em abril/2017. Berlim foi fácil inscrever e fiz ainda em 2017. Agora faltava um semestre para meu aniversário e faltava Tóquio e Boston. O planejamento já vinha sendo feito bem antes.
Logo que abriram as inscrições para Tóquio meu notebook apitou. Devo ter sido um dos 10 primeiros a me inscrever. Como é que eu iria para lá era outra coisa, mas a inscrição estava feita. Pronto, Tóquio concluída.
Faltava Boston, mas a inscrição também já tinha sido feita. Eu não tinha tempo, não tinha índice, não tinha nada, mas argumentei que só faltaria Boston, que era um plano antes dos 50, que já tinha feito outras 4 antes de dois anos e pronto, inscrição aceita.
Cheguei em Boston, naquele frio do cão, uma chuuuuuuva que Nossinhora! Completei, recebi a medalha da prova e a Mandala das Majors. Como eu chorei… meu Deus do céu, como foi bom, foi indescritível, foi ótimo.
Hoje eu já corri 23 Maratonas + 1, não deixo de contabilizar a que eu e o Evandro fizemos juntos.
E a Comrades… como posso deixar de falar da Comrades?
Era final de 2013. Eu já tinha feito várias maratonas mundo afora e sempre muito gostoso correr e viajar. Eu e minha esposa adoramos e ficávamos programando as viagens em função das provas ou o contrário também é verdadeiro.
Aí apareceram uns malucos me chamando para poder fazer a Comrades. Eu já sabia muito sobre a prova, mas nunca tinha pensado em correr uma ultra, principalmente a Rainha das Ultras.
Veio fevereiro/2014 e iniciamos os treinos. Uma festa, verdadeiros 4 meses de pura festa, alegria, companheirismo, amizade. Só diversão. Alugávamos uma van que ia nos seguindo, parando em postos que marcávamos com antecedência. Se alguém se cansasse, subia na van e seguia o trajeto de carro. Noutro dia faria o treino. E fomos subindo e descendo morro nestas estradas que saem de BH. Chegamos a ir até a entrada de Inhotin. Para quem não é daqui, quando levei minha mãe lá ela teve que tomar Dramin para não ter enjoo. Foi um treino de 65KM. Parecia uma coisa de maluco.
Mas aí chegou o dia da viagem. Logo em Guarulhos, umas 100 pessoas juntas, sentadas no saguão tirando fotos. Como nós gostávamos mais era de viajar do que de correr, primeiro fizemos um safari, passeamos por 5 vinícolas em Cape Town. Um show! Que país incrível é a África do Sul.
Chegamos a Durban, conhecemos a cidade. Naquele ano, ano par, era ano de descida. 1 hora da madrugada o celular despertou para que eu tomasse um banho, fosse tomar o café da manhã e pegar o ônibus as 3 da madrugada para lagar às 5 ou 5:30, não me recordo.
Foram 89KM inesquecíveis. Quando completei dei um abraço apertado na minha esposa, eu todo suado e gritando nos ouvidos dela: “Rose, nós conseguimos fazer o que quisermos fazer. Só depende de nós. Deus nos dando saúde, fica mais que provado que nós conseguimos. Olha só. Eu fiz 9 provas dos Circuito das Estações em um único dia. Foram 5 voltas na Pampulha. Duas Maratonas e ainda sobraram quilômetros. Mas anote aí: eu nunca mais corro esta prova. Se eu inventar de começar a treinar você se separa de mim porque não dá. É muito sofrimento. Depois de determinados KMs eu andava, andava, corrida, andava de novo, subia morro, vinha uma curva e mais morro. Nunca mais.”
Chegou fevereiro do ano seguinte e lá estava eu inscrito, iniciando o treino e pedindo a ela para não se separar de mim, que corredor não tem palavra. Estava com mais medo porque era prova de subida.
Chegou o dia da prova, Shosholoza, e pronto. Corremos até a linha de chegada. Tínhamos montado uma estrutura toda legal para podermos voltar de van. A dona da van, uma portuguesa, enrolou, não pagava o motorista que se recusava a iniciar a viagem de volta, 12 pessoas suadas dentro de uma van, mas no final, voltamos.
Chegamos ao hotel, um banho merecido, um vinho e chopp com os Comrades e, no dia seguinte, Ilhas Maurício. Que lugar! Back to back, duas medalhas da Comrades e mais um país conhecido. Fuso horário de 7 horas, quase não dava para conversar no Brasil. Nos divertimos bastante.
Só que aquela Comrades foi diferente. Um grande amigo, o Mauro, escorregou em um saquinho de água no KM83, não conseguiu correr nem andar mais e foi retirado da prova. Ficou sem a medalha.
Na empolgação da chegada, dei-lhe um abraço e fiz a promessa: ano que vem eu volto e completo essa prova contigo. Sem medalha você não volta.
E foi o que aconteceu: 2016 estava eu lá para minha 3ª Comrades.
Só que eu tive um problema que só descobri após a prova. Durante os treinos eu sentia uma dor no glúteo que nada fazia parar de doer. Comecei a prova. Com 50 metros já veio a dor. Fui sofrendo, mas acompanhando o Mauro.
Passamos os primeiros 10KM e falei com ele: “Mauro, já foi uma das Estações”.
Completamos 18KM, “já foi uma Pampulha”. E fomos nessa toada. Quando completamos 70KM eu falei com ele: “Mauro, a medalha já está garantida. Se formos andando bem devagar, chegaremos com 11h50m.”
Ele então me dizia: “Eder, você tem uma calculadora na cabeça. Você fica fazendo conta o tempo todo!”
E eu: “uai, é um jeito de passar o tempo. Faz conta, KM passa, a gente vai chegar.”
Como nós não ficamos só na caminhada, fomos parando, tirando fotos. Encontramos um amigo todo estrupiado no KM 62, o Cracrá, de Recife. Ele nos mandou seguir que ele não iria mais. O incentivamos e ele foi conosco.
Acho que desde a Disney eu nunca tinha tirado tanta foto durante uma corrida. Aliás, nas duas outras Comrades que eu fiz eu não tinha levado o celular, né.
O pessoal que foi chegando ia recebendo notificações de onde estávamos. De repente, pararam de receber quando chegamos ao KM 87 e nos disseram que desesperaram, que a Paola, esposa do Mauro, que já tinha chegado e completado sua 3ª Comrades já estava chorando. Pouco depois começamos a nos movimentar no app.
Esse pessoal não entende, gente. Qual o prazer de você chegar, pegar sua medalha e não levar nenhum bom registro pra casa? Nós fomos parando, jogando beijo para as nossas torcedoras ao longo da rodovia. Agradecíamos, dizíamos shosholoza o tempo todo. Foi muito gostoso!
No final, completamos a prova com 11h47m. O Mauro todo sorridente, o Cracrá aos prantos, gravando vídeos para a família que estava em Recife, nos abraçava, dizia que sem nós não teria chegado. Viramos verdadeiros irmãos desde então. São essas as histórias que a corrida e, principalmente, a Comrades nos dá.
Logo que voltei marquei o ortopedista. Ele diagnosticou uma fratura no osso ilíaco. Disse que na literatura esse osso fratura em queda de moto, por exemplo, mas nunca tinha visto uma fratura nesse osso por estresse.
Ele era o mesmo da reconstituição do LCA, do Mestrado, das fotos, sorriu novamente e me disse: “Eder, você não tem jeito”.
Após as 3 Comrades eu parti para “completar vários sonhos antes dos 50” e fui para Nova York e o resto vocês já sabem.
Depois das Majors, repeti Nova York e também Chicago, pois a Rose, ainda não era “Major em companhia do marido”, faltava essa Maratona para ela.
Depois disso eu desanimei, acho que o psicológico cansou pelo tanto de corrida feita em tão pouco tempo. Aliado a isso vejo a pandemia e nesses dois últimos anos sequer corri um único KM.
Hoje sou um ex corredor? Não sei, ainda não tenho comigo se voltarei a correr ou se não. Acredito que dei um tempo e em breve, com as coisas acalmando, o mundo se tornando novamente um lugar de atitudes normais, provavelmente eu volte para sentir prazeres que senti ao longo de 18 anos correndo pelas ruas.
Este é o meu relato. 😊
Ah, não poderia faltar a foto de eu e o Maurão completando a nossa inesquecível Comrades da matemática e da bunda quebrada.
