por Fernanda Paradizo
A paulistana GISELLE ALBUQUERQUE DE LA HIGUERA, de 51 anos, começou a correr em 2004, com o objetivo de adotar uma atividade física fácil de praticar e que não precisasse nada a mais a não ser um tênis no pé.
Os primeiros passos foram dados numa praça do Real Parque, no Morumbi, com auxílio de um personal trainer e a meta de conseguir percorrer 5 km. Mas a motivação mudou quando Giselle, que é engenheira de alimentos, entrou para a assessoria MPR, em fevereiro de 2005. Não demorou para que quisesse alçar objetivos e distâncias bem maiores. A primeira corrida aconteceu logo três meses depois numa prova em equipe, a Volta à Ilha, em Floripa. Na sequência, veio a oportunidade de estrear nos 21 km, logo na Meia maratona do Rio de Janeiro. “Lembro que terminei com uma sensação maravilhosa no corpo, uma felicidade na alma e uma pergunta na cabeça: ‘Meta dos 21 km atingida. E agora?’.”
Corredora há 16 anos e hoje com 11 maratonas no currículo, Giselle conta aqui como começou sua saga pelas maratonas, como surgiu o interesse pelas Majors, a importância do treino em grupo, a emoção de receber sua mandala e o misto de emoções que viveu após cruzar a linha na Maratona de Boston em 2013, ano da explosão das bombas.
MAJORS BRASIL: O que a motivou a encarar uma maratona em 2006? O fato de estar dentro de um grupo de corrida foi decisivo para arriscar distâncias maiores?
No café da manhã antes da Meia do Rio conheci uma aluna MPR, a Fabia, que também ia correr. Fomos juntas para a largada. Dividimos táxi, ficamos amigas e ela me pôs pilha para fazer a inscrição para Chicago. Fazíamos os longos aos sábados bem cedinho na USP. Começávamos todos juntos. Éramos em 10. Ao longo do treino, formavam os subgrupos com paces diferentes. Os treinos longos foram ficando mais leves e fui sentindo melhoria na minha performance. Durante a semana, fazia o treino na esteira da academia. Nestes longos, ouvia muitas histórias, mas sempre falavam do mito dos 32 km, onde ‘os homens se separam dos meninos’ e começava o sofrimento, que ‘maratona é uma prova de 10 km depois dos 32 km’. Isso só aumentava a minha curiosidade para saber como seria essa sensação no meu corpo, na minha alma. Mal sabia eu que a senhora da situação seria a minha mente.
Fazer parte de uma assessoria como a MPR fez toda a diferença. Possibilitou que eu tivesse suporte profissional, orientação técnica e emocional de um excelente coach como o Fabio Rosa e o acompanhamento de todo time MPR (Marcos Paulo, Emerson e Cesar), além de conhecer pessoas maravilhosas. O maior presente que a corrida me deu foram os muitos amigos que fiz e que tenho na minha vida até hoje e as tantas experiências que vivi.
MAJORS BRASIL: Sobre sua estreia nos 42 km, quais eram seus medos e receios antes de encarar a distância?
Medos de ter vontade de ir no banheiro durante a prova, medo de doer, medo de não conseguir terminar, de não dar conta, de fazer bolha, do pace… sempre fico com ‘borboletas’ no estômago.
MAJORS BRASIL: E como foi sua estreia em Chicago? Conte-nos um pouco sobre sua prova. Ansiedade antes, o trajeto, ritmo, tempo, momento emocionante, momento mais difícil, a emoção de cruzar a linha de chegada?
Todas as minhas maratonas têm história, mas sem dúvida Chicago foi inesquecível. Pensa naquela pessoa que fez tudo direitinho nos treinos, alimentação, hidratação. Na feira, tinha aquelas pulseirinhas com pace. Eu tinha duas no pulso para saber qual ritmo seguir de acordo com o plano de prova estabelecido pelo Fábio Rosa. Na hora da largada, minha amiga Lili, já experiente, recomenda para eu não esquecer de ligar o relógio antes para o GPS localizar. Ou seja, não esquecer de apertar o start. E lá vamos nós para a largada. Friaca forte. Largou! Ligo o relógio… e ele parou! Ah?! Isso mesmo! Quebrou na largada. Aí a vontade era de teclar a pausa como num controle-remoto e buscar outro relógio. Totalmente perdida, não sabia como ia fazer para saber o pace que estava. Pensei: ‘Segue o coelho, que está com plaquinha do pace e vai em frente’. Aí vejo 3 amigos ‘amarelinhos’, daquele grupo de treinos de 10 da USP. Fui junto até os 32 km. Estava bem, cautelosa, mantendo ritmo e lembro de meu amigo mandar eu seguir sozinha porque ele estava reduzindo o ritmo e eu tinha ‘lenha para queimar’. Lá fui eu até a linha de chegada. Foi show! Terminei muito feliz, satisfeita com meu desempenho e com o tempo muito melhor do que meu plano de prova e das minhas expectativas (3:46:33).
MAJORS BRASIL: Depois da estreia em Chicago 2006, veio Berlim 2007 e Nova York só em 2010. Neste ponto, você já tinha no currículo teoricamente as maratonas do circuito mais fáceis de conseguir inscrição. Quando de fato começou a perseguir o sonho das 6 Majors?
Consegui o índice para Boston em 2012, na Maratona de Buenos. Na verdade, nunca imaginei conseguir o índice. Na ante-véspera da prova, a MPR organiza um jantar e na mesa um rapaz ficou contando as experiências dele em Boston. Fiquei curiosa para saber qual era meu índice e na mesa olhamos o tempo para minha faixa de idade. Durante a prova, percebi que estava bem, naquele dia em que tudo se encaixa perfeitamente. Tinha feito ao longo do ciclo um acompanhamento com Cassio Siqueira, fisioterapeuta de Organização Postural da Care Club, que me ajudou muito. Quando cheguei nos 32 km, percebi que estava dentro do índice. Gritei para o Cesar, coach da MPR: ‘Qual ritmo tenho que correr para o índice de Boston?’ E ele me respondeu: ‘Faz o melhor que você conseguir’. E fiz. Naquele dia, consegui meu índice para Boston 2013 e RP na distância (3:41). Voltei no mesmo dia para casa. Saí da prova direto para o aeroporto. Cheguei em casa exausta e feliz. Quando fiz Boston que realizei que já tinha 4 das Six Majors, pensei: ‘Nossa, agora só faltam duas. Tenho que fazer’.
MAJORS BRASIL: Boston 2013 foi um ano marcante por conta do atentado. Como foi essa prova para você? Onde estava quando explodiram as bombas? Quais eram as preocupações com outros amigos que estavam na prova, de contatar os familiares para dizer que estava bem? Conte-nos como foi passar por isso e que sensação guarda desta prova?
Boston é uma prova tão desejada que ter conquistado estar lá é uma honra. Terminei exatamente como previsto: 3:52:28. Cruzei a linha de chegada 8 minutos antes da explosão. Estava feliz na esquina da Biblioteca para cruzar e passar debaixo da arquibancada e seguir para a entrada do meu hotel, exatamente no lado oposto da explosão da bomba e no lado da tenda médica. Infelizmente vivi momentos de intensa felicidade por completar a prova e imensa tristeza por ver tamanha crueldade. Quando ouvi, sabia que tinha sido uma bomba. Naquela prova tinha levado o celular no bolso da calça e liguei para meu marido chorando e dizendo para ele que tinha acabado de explodir uma bomba. Lembro de dizer que estava vendo muita gente machucada. Ele não entendeu nada. Tinha me acompanhado virtualmente pelo computador e sabia que eu tinha terminado. Disse para eu me acalmar, ir para o hotel e ligar quando chegasse lá. Tive a oportunidade de fazer um curso antes da prova e conhecer o estilo de vida americano. Posso dizer que conheci o lado bom e o lado ruim, uma sensação de insegurança enorme, sem saber o que iria acontecer. Logo que recebi a medalha tirei uma foto e postei no Facebook. A rede social fez com que meus amigos e familiares soubessem que eu estava bem. No dia seguinte, já estava previsto meu voo de retorno, que era Boston-NY e depois NY-SP. Acordei cedo e consegui fazer o voo interno. Na hora do embarque do voo entre NY-SP, tinham soldados entrevistando um a um. Fui questionada de onde estava vindo e qual era meu tempo. Fui separada para ser entrevistada e naquele momento tive a certeza que quem tinha cometido tamanha crueldade seria encontrado. As lembranças são fortes e penso que se eu tivesse diminuído meu pace na metade da prova a história hoje poderia ser diferente. Naquele dia meu anjo-da-guarda correu ao meu lado.
MAJORS BRASIL: Depois de 4 Majors completadas, você demorou um pouco mais para fazer outra Major. Houve algum motivo especial ou foi mais pela dificuldade de conseguir a vaga para as outras duas provas que faltavam? Você planejou terminar em Tóquio?
Depois de fazer 4 maratonas em 2 anos com 3 delas tendo ciclos fortes de treinos para subidas, lesionei o glúteo. Levei um bom tempo para recuperar e o que me ajudou entre tantas sessões de fisioterapia foi a eletroacupuntura. Aí melhorei. Além disso, teve também a dificuldade de conseguir a vaga. Só consegui em ambas as provas por ter feito Charity. Não planejei terminar em Tóquio, mas, em virtude de toda questão logística envolvida, ficou por último.
MAJORS BRASIL: Como foi a Maratona de Tóquio e a emoção de completar as 6 Majors do outro lado do mundo?
Sempre a última parece ser a mais difícil. E foi mesmo. Foi com chuva e muito frio. Foi sofrido. Teve força, foco e fé… muita fé! Tive uma lesão pré-prova 3 semanas antes e fiz muita fisioterapia. Mesmo já sendo uma corredora experiente, rolou aquela insegurança. Não era possível que com tudo planejado eu não iria conseguir buscar a minha mandala. No dia da prova, um frio intenso e garoando, fui com a Fabianna Carnaval para a largada. Encontramos a Pat, também aluna MPR, e ficamos aguardando a largada com capa de chuva e tremendo. Na largada, a Fabi e a Pat tinham plano de prova parecido e o meu era bem mais conservador. Logo que largou senti que estava bem e fui junto com elas, mas decidi ser conservadora e, numa atitude de muita amizade e generosidade, a Fabi decidiu seguir comigo. Corremos juntas até perto do km 28 e foi muito bom.
Nós nos divertimos. Dai pra frente, a prova foi dura. Esfriou muito e no final foi sofrido. Mas tive o grito de incentivo do meu marido, Edu, na reta final. Lembro de pensar ‘caramba, não quero que essa prova termine’. Cruzei a linha de chegada agradecendo por tudo, por ter tido a oportunidade de estar lá e viver aquele momento. Teve a torcida de tanta gente querida. Quando você vai completar as Majors recebe um numeral informando que está na sua última prova. Após cruzar a linha de chegada, todos me cumprimentavam, os japoneses aplaudiam, faziam cumprimentos em uma corredor e aí me encaminharam para uma tenda, onde recebi a medalha. Na hora me emocionei muito. Pensei em todo o esforço e dedicação que tive para chegar lá. Foi um daqueles momentos que você, com sorriso no rosto e mandala no peito, guarda no coração. Dormi com a sensação de dever cumprido.
MAJORS BRASIL: Em poucas palavras, como descreveria hoje cada uma das Majors? Se tivesse que escolher uma para repetir, qual seria?
Chicago é plana e alegre. Berlim, plana e lotada. Nova York, uma festa e difícil por tanto sobe e desce. Boston, inesquecível. Londres, uma prova com propósito de Charity. Tóquio, prova organizada e com trechos repetitivos, com idas e voltas no percurso. Se fosse escolher uma para repetir, seria Nova York. A energia e a vibração te empurram até o Central Park. Prova muito alegre e divertida, mas dura e sofrida. Mas quem disse que eu gosto do fácil? (rsrsrs)
MAJORS BRASIL: Depois das Six Majors, como ficaram seus objetivos de corrida? Tinha alguma maratona planejada para 2020 ou algum sonho de corrida que teve que ser adiado por conta da pandemia?
Depois das Majors, tenho vontade de correr 3 provas: o Desafio do Dunga, a Two Oceans e o Cruce de Los Andes. Estava inscrita no Cruce para dezembro de 2020. Mas ficou para 2021.
MAJORS BRASIL: O que a corrida significa para você? Quais os benefícios que trouxe para sua vida? Como é um dia seu de treino e como concilia com as outras coisas da vida, como trabalho, família, lazer?
Lógico que correr faz bem à saúde física e mental, mas não é só isso que me faz colocar o tênis. Corro para me conectar e algumas vezes para desligar. Outras para pensar na vida, para orar e também para me desafiar. Os benefícios foram enormes, como auto-conhecimento, determinação e muitos amigos. Treino sempre pela manhã. Acordo com energia e vontade. A noite não funciona para mim. Para conciliar trabalho e família com os treinos, é fundamental bom planejamento, foco, força e fé.
MAJORS BRASIL: Quais conselhos daria para quem quer perseguir o sonho das Majors?
Para conquistar esse sonho você precisará de planejamento, determinação e vontade. Escolha um time para te orientar. Um bom coach, nutricionista, fisioterapeuta farão toda a diferença. Muitos quilômetros serão percorridos, muitas histórias você terá para lembrar e tenho certeza que irá valer muito à pena.