Bela Vista de Havana

It’s not just extreme human endurance

that captivates me,but also extremes

in geography and climate.

Dean Karnazes (ultramaratonista)

Lembro-me bem. Era manhã de um domingo chuvoso de
abril, há uns três anos, quando resolvi pôr em ordem a
minha pequena biblioteca. De repente, um livro que li em
meus tempos de secundarista caiu-me às mãos como num passe
de mágica: A Ilha, de Fernando Morais.
Primeiro, admirei-o, depois o afaguei. Finalmente, retirei suavemente
um marcador de livros já desbotado pelo tempo e repleto
de anotações. Li com avidez as quase ingênuas anotações do
meu tempo de adolescência. E assim, tomado de nostalgia, iniciei
a releitura deste livro que foi tão importante para mim nos anos
plúmbeos, que caracterizaram a minha juventude.
Desta maneira ocupei todo aquele domingo cinzento, no início
sem muito que fazer, relendo esse livro. Logo depois, naquele
mesmo dia, quis rever o filme Buena Vista Social Club, do diretor
alemão Wim Wenders. Em seguida, vi também o Habana Blues,
de Benito Zambrano. Completei o dia assistindo ao Suite Habana,
de Fernando Pérez, o documentário que narra um dia na vida de
vários cubanos. E foi assim que nasceu o embrião do plano de
correr a Maratona de Havana – a Marabana.
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Para impulsionar a decisão de ir a Cuba, nos meses seguintes,
aprofundei meus conhecimentos sobre a famosa ilha caribenha.
Principalmente sobre a revolução cubana. Também sobre o atual
modus vivendi do povo cubano. Além disso, busquei informações
mais precisas sobre a Marabana.
A Cuba relatada por Fernando Morais nos anos 70 não é mais
a de hoje. Aquele momento era o auge das transformações sociais
proporcionadas por Fidel Castro. A invasão da Baía dos Porcos – o
tour de force de Fidel – ainda permanecia viva na memória dos
cubanos. O bloqueio norte-americano difundia um sentimento
de nacionalismo muito grande em todo o povo. O socialismo era
apoiado pela União Soviética, tanto no aspecto financeiro como no
diplomático. Na realidade, os soviéticos substituíram os americanos,
enviando petróleo e comprando quase toda a produção de açúcar.
Além de apoio militar, a União Soviética ajudava tecnicamente
na construção de escolas, hospitais, na infraestrutura em geral.
Desde a libertação de Cuba do domínio espanhol por José
Marti, na virada do século XIX, os Estados Unidos assumiram a
posição de novos dominadores, ao apoiar os sucessivos ditadores
que defendiam os interesses estadunidenses. Com Fulgêncio Batista,
a Ilha foi dominada pelos gângsteres (inclusive Al Capone),
pela prostituição, pela jogatina. Além disso, grande parte das
terras produtivas de Cuba estava nas mãos de grandes empresas
norte-americanas.
O objetivo precípuo da revolução cubana foi, sem dúvida, a
mudança neste status quo. O triunfo da revolução deveu-se ao
apoio dos campesinos em primeira instância e depois do povo em
geral. Com a queda do Muro de Berlim, o desmantelamento do
comunismo na União Soviética e a separação das repúblicas socialistas,
assim como a ineficiência do modelo socialista no mundo
inteiro, Cuba, consequentemente, entrou em crise profunda
com a crescente retirada do apoio da Rússia.
A Cuba de hoje possui problemas econômicos profundos: racionamento
de alimentos, produção agrícola estagnada, muitos
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problemas de infraestrutura e a crônica falta de energia, embora
a importação de petróleo seja subsidiada pela Venezuela. Entretanto,
lentamente, Cuba retoma o intercâmbio comercial com o
mundo. Com exceção, é claro, dos Estados Unidos.
Com a retirada de Fidel Castro do cenário político – ao menos
formalmente – há uma abertura lenta, incentivada pelo seu
irmão Raúl. Claro, ainda existem vários presos políticos e isso é
inadmissível em qualquer regime que tenha pretensões democráticas.
Também não há direito pleno de ir e vir do cidadão cubano.
Principalmente em viagens ao exterior, é necessária uma autorização
especial do governo. Para isso, já há mudanças previstas por
Raúl Castro.
Com a eleição de Barack Obama, há uma grande esperança
de que as relações com os Estados Unidos tomem um novo rumo,
embora o lobby anticastrista na Flórida tenha um poder avassalador
no congresso americano.
É evidente que o socialismo idealizado pelos revolucionários
de Sierra Maestra não atingiu o seu objetivo pleno. A universalização
do ensino, o sistema de saúde eficiente e gratuito para todos
os cubanos, a melhoria no acesso à moradia, a segurança, o apoio
aos esportes são reconhecidamente um sucesso. Assim, foram admiráveis
e inacreditáveis todos esses êxitos, porque nenhum outro
país teria suportado por muito tempo o embargo econômico e diplomático
imposto pela OEA, capitaneado pelos Estados Unidos.
Os ideais de Che Guevara, Fidel, Camilo Cienfuegos e outros
foram seguidos fielmente pela maioria da população cubana. Ao
mesmo tempo, houve uma resistência do povo cubano às tentativas
dos contrarrevolucionários de restabelecer a ditadura nos
moldes de Batista.
A sustentabilidade da revolução cubana foi movida por ideais.
Che Guevara foi o maior dos idealistas e, ainda hoje, é reconhecidamente
um herói em Cuba e considerado a figura mais importante
na Revolução Cubana. Com sua morte, tornou-se um mito em
todo o mundo. Ernesto Che Guevara parecia flertar com a morte
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desde cedo. Antes mesmo de ser o Che, antes de se formar em medicina,
aventurou-se com o amigo Granado pela América Nuestra
de motocicleta. Nessa viagem, transformou-se definitivamente, ao
ver de perto a miséria do continente dito latino-americano.
Alguns anos depois, já trabalhando como médico no México,
Che conheceu Fidel Castro e o irmão Raúl, exilados, após serem
libertados da prisão em Cuba. O destino foi traçado então. Che
tornou-se grande amigo de Fidel e com ele e oitenta e dois guerrilheiros
partiu no pequeno barco Granma de volta a Cuba para
fazer a revolução.
Asmático, brilhantemente inteligente e culto, disciplinado e
convicto de seus ideais, logo Che tornou-se comandante de um pelotão
de guerrilheiros em Sierra Maestra. E foi deste modo que teve
início a construção de um mito que até hoje perdura, espalhado
mundo afora.
Por que Che abandonou o comando do Ministério da Indústria
de Cuba, o cargo mais importante depois do ocupado por Fidel
e aventurou-se na selva do Congo para transplantar a revolução?
Por que, então, com o fracasso no Congo, foi fazer a revolução
na Bolívia? Um enigma ou simplesmente idiossincrasia de uma
mente inquieta?
Quando Che foi capturado e morto em La Higuera, na selva
boliviana, pelo Exército boliviano e pela CIA, de certa maneira ele
sabia que sua morte faria nascer o mártir da revolução cubana.


Escrevo esta introdução sentado no La Bodeguita del Médio,
entre goles de mojito – uma mescla de rum, limão, açúcar e hortelã
– e daiquiri, o drinque preferido de Ernest Hemingway. Aqui,
dizem, Hemingway escreveu quase todo Por Quem os Sinos Dobram
– considerado por muitos sua melhor obra, se excluirmos
O Velho e o Mar – durante os vinte anos que viveu em Cuba. Este
bar-restaurante, sempre cheio de turistas atraídos pelo fato de aqui
Hemingway ter sido um habitué e ter criado, ele mesmo, alguns
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dos drinques da casa, serve também a cozinha tipicamente cubana,
a gastronomia criolla. Peço, com certa displicência, um picadillo
habanero. Enquanto o garçom me serve, anoto os nomes de
famosos que autografaram a parede à minha frente: Hemingway,
Nat King Cole, Fidel, Pablo Neruda e outros.
Antes de deixar La Bodeguita, acendo um charuto. Não fumo
há anos; há muitos anos mesmo. Mas, vez por outra, por diletantismo,
me arrisco a fumar um “puro” cubano – um Cohiba, o
melhor de todos. E aqui em Cuba, neste propício bar-restaurante,
reservo-me este prazer proibido aos maratonistas profissionais.
Já noite avançada, extremamente cansado, um pouco embriagado
pelo excesso de rum puro e de vários mojitos, com as pernas
trôpegas e trêmulas pelo esforço da maratona da manhã de hoje,
vou caminhando pelas ruelas quase desertas e escuras da Habana
Vieja, em direção ao meu hotel.
Depois de caminhar nessas ruas e ruelas estreitas sem nomes
visíveis, carregando o medo renitente da insegurança brasileira
ao andar em lugares desertos à noite, de repente chego a uma pequena
praça e vejo um bar ainda aberto – El Huracán Cubaño.
Surpresa! O bar totalmente cheio. E surpresa maior ainda quando
chego bem nos fundos à procura de uma mesa. Vejo alguns maratonistas
que conheci durante a concentração e na linha de chegada.
Inicialmente, tinha a intenção de permanecer ali por pouco
tempo. No entanto, depois de longas conversas sobre a maratona
e, principalmente, sobre a “ditadura do proletariado”, sobre a crise
atual do capitalismo, resolvemos, por indicação, avançar na noite
no Habana, um club no Hotel Meliá, para os lados do Vedado,
frequentado quase exclusivamente por turistas e, talvez, o melhor
de Havana.
No dia seguinte, acordo bem cedo. Dia de voltar pra casa, depois
de mais uma maratona. Certamente esta terá um enorme destaque
entre as tantas outras de que já participei. Então, no café da manhã
mesmo, inicio o relato desta prova, que corri com tanto prazer e
admiração por esta cidade que um dia sonhei conhecer.
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A concentração para a largada da maratona La Marabana
ocorre na Rua Brasil, bem ao lado do Capitólio. Resolvo fazer um
leve aquecimento ali. Enquanto me alongo, um grupo de corredores
cubanos passa por mim. Vejo também uma velha de mãos
dadas a uma menina jovenzinha. Ambas parecem felizes, como se
mutuamente se protegessem. E todos cumprimentam um grupo
de basureros (lixeiros), como se fossem amigos do mesmo bairro.
Um grupo de estudantes vindo da província de Pinar del Rio
junta-se àqueles corredores felizes e seguem em direção à largada.
Depois de mais alguns minutos de aquecimento, deixo a Rua
Brasil. Acompanho os outros corredores em direção à largada e me
junto a um pequeno grupo de maratonistas. Vladimir, de meia-
-idade, lembra bem um intelectual. Com muita satisfação, ele me
informa mais alguns detalhes sobre o percurso. Depois, já impactado
dentro da baia da linha de largada, ainda converso com um
alegre grupo de corredores da meia maratona.
Por instantes percebo ali o grau de felicidade do povo cubano,
apesar do constante racionamento, da renúncia (ou abdicação)
ao luxo em prol do bem comum. De certa maneira, vejo naquele
lugar simples a confirmação empírica do Paradoxo de Easterlin
– um estudo do professor de economia da Universidade da Califórnia,
Richard Easterlin – que proclama: “Depois de preencher
as suas necessidades básicas, o aumento constante na renda não
influencia em nada no grau de felicidade dos seres humanos.”
Acrescente-se, claro, em nível abrangente, coletivo.
À espera do tiro de largada, aprecio a Praça do Capitólio –
uma réplica do Capitólio de Washington, afirmam os cubanos,
ainda um pouco mais alto –, que abriga hoje o Departamento de
Ciência e Tecnologia. É um prédio realmente muito bonito!
Faz pouco tempo que o sol nasceu. A temperatura gira em
torno dos dezessete graus. Há uma brisa fria que sopra do Caribe,
perfeitamente suportável. Enquanto o sol se levanta, a praça se enche
vagarosamente. Percebo que há muitos corredores estrangeiros,
a maioria europeus e muitos canadenses. Alguns americanos,
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apesar da proibição de viajarem a Cuba. Também muitos maratonistas
do interior da ilha, assim como de todas as grandes cidades
de Cuba, esses últimos financiados pelo governo cubano. Isto é,
para os cubanos, a Marabana é totalmente grátis, desde a inscrição
até a estadia.
Faltam poucos minutos para as sete horas da manhã. Antes
de me posicionar para a largada, apalpo os bolsos do meu short.
Certifico-me dos oito sachês de géis diferenciados, da cafeína e do
Tylenol, que levo comigo por contingência e agora, com certeza,
do tablete de sal. O sal é a bola da vez.
Muito tem se falado da perda de sódio durante provas muito
longas. A hiponatremia seria o fenômeno que mais atormenta os
corredores de longa distância, notadamente depois do quilômetro
trinta. A hiponatremia, na realidade, ocorre depois de uma
perda exagerada de eletrólitos. Com a perda de sódio, magnésio
e potássio, surgem as dores musculares, cãibras e o aumento
dos batimentos cardíacos. A ingestão excessiva de água durante
a maratona agrava a situação. O rendimento cai drasticamente.
O ideal, diz dr. Lewis G. Maharam, diretor-médico da New York
Road Runners, é que “se tome um copinho de água a cada vinte
minutos de corrida.” É evidente que isso depende da variação da
temperatura. Mas, mesmo assim, é um contrassenso beber água
exageradamente. O ideal, nesses casos de muito calor, é resfriar o
corpo com muita água, se possível gelada, derramando-a na cabeça,
nos pulsos e nas costas.
Antes de ouvir o som da corneta de largada, mecanicamente
procuro no pulso o GPS. Pela primeira vez, em vinte e nove
maratonas, vou correr sem cronômetro. Propositadamente, nem
mesmo o trouxe comigo, pois pretendo correr aqui em Havana o
mais confortavelmente possível. Afinal, esta é a sexta deste ano e
a redução do esforço se faz necessária. Desta vez, quero sentir o
prazer de correr sem marcar o tempo a todo instante.
No primeiro quilômetro, vou passando por edifícios coloniais
da Velha Havana. Alguns bem preservados, outros decadentes.
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No geral, os aprecio com deleite. Enquanto os observo, vou tentando
estabelecer o ritmo sem muito esforço. Os batimentos cardíacos
também já consigo controlar sem o monitor, consequência
natural de muitas rodagens e provas ininterruptas.
Entrando no segundo quilômetro, vejo o Hotel Sevilla e lembro-
me de Graham Greene em Nosso Homem em Havana. Neste
livro, bem ali embaixo da balaustrada, ocorre o assassinato do turista
holandês, na Havana à beira da revolução castrista. E imagino
se realmente houve o crime ou seria apenas uma invenção bem
elaborada de escritor.
Após o segundo quilômetro, passo em frente ao Museu da
Revolução. Um belo edifício dos anos vinte de estilo neoclássico,
residência de vários presidentes antes da revolução. Seu acervo
conta com uma documentação completa, fotos, filmes da libertação
cubana, assim como a exposição do barco Granma. Também
várias homenagens à vitoriosa batalha da Baía dos Porcos.
Ainda no período inicial da prova, vou correndo displicentemente.
Deixo apenas os quilômetros passarem lentamente, como
em um slow-motion.
Logo depois do Museu da Revolução, em torno do terceiro quilômetro,
me aproximo lentamente de uma maratonista morena,
alta, cabelos lisos e pretos. Alargo o passo. O meu pace é confortável.
Ela sente que me aproximo, mas não olha para trás. Quando
fico lado a lado, falo com firmeza: “Qué tal, guapa?” – Ela me olha
obliquamente. O rosto belo e suave brilha de suor. Tem olhos incrivelmente
dourados, beirando o tom amarelado dos lobos. Entretanto,
como uma gazela, parece correr sem esforço algum.
Confesso que gostaria de ter tido uma longa conversa. Mas ela
foi demasiadamente sucinta, monossilábica. Talvez não estivesse
bem treinada para falar e correr ao mesmo tempo. Perceptivelmente,
sua respiração se tornou ofegante. Quando se aventurava
a falar um pouco mais, era demasiadamente rápida e resvalando
num espanhol quase incompreensível. Depois de alguns minutos,
ela voltou à sua concentração, após trocarmos informações banais
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sobre Cuba e Brasil. Compreendi a situação, acelerei lentamente
os meus passos e a deixei para trás.
Poucos minutos depois, estou correndo no Malecón. Vejo à
minha esquerda o sempre visível Castillo de la Punta, com o seu
indefectível farol. Viro à direita e contemplo toda a orla marítima
mais famosa de Havana. Aqui o vento sopra com força, sempre.
Com tanta força, aliás, que parece um resquício do furacão Paloma,
que sacudiu a ilha na semana passada.
Agora prefiro correr só. Há um grupo à minha frente, mas
prefiro escutar apenas o barulho vigoroso das ondas se chocando
de tempos em tempos no quebra-mar. Neste ínterim, consigo
ouvir também o som da cinética humana. Os passos ritmados daqueles
que correm nas proximidades. É fascinante!
Pouco mais de uma hora de corrida – calculo superficialmente
pela quantidade de quilômetros – entro no Vedado, o bairro
moderno de Havana, de arquitetura bem distinta da Velha Havana
e do Centro Habana. Ali estão alguns cinemas, pizzarias e
bons restaurantes. À noite, o bairro se transforma e se divide em
territórios. Há o pedaço dos maricones, no final do Malecón. Há
o dos mais ou menos punks, o dos travestis, o das lésbicas e o das
prostitutas de luxo. Todas estas tribos convivem pacificamente
numa sociedade socialista.
No bairro Colón, avisto um companheiro de maratonas, o
peruano Pablo, acompanhado de um grupo de conterrâneos.
Aproximo-me lentamente e me envolvo no alegre bate-papo. Alterno-
me sistematicamente entre os participantes deste simpático
grupo, enquanto vou reconhecendo as ruas simples deste bairro,
cenário constante do livro A Trilogia Suja de Havana, de Pedro
Juan Gutierrez. E continuamos em grupo, de volta ao Centro Habana,
onde passaremos pelo limite da meia-maratona.
Quando entro na Plaza de La Revolución, vejo estupefato o
enorme rosto de Che Guevara na fachada central do prédio do Ministério
do Interior. Esta praça bem conservada, harmonicamente
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bela, possui no seu centro o imponente monumento a José Marti,
que se torna até pequeno, diante do monumentalismo da silhueta
de Che.
Finalmente chego à meia-maratona. Agora tenho que repetir
o mesmo percurso de volta. A Marabana é como muitas maratonas
ao redor do mundo. Os corredores passam pela chegada da
meia. A diferença aqui é que repetimos o mesmo percurso anterior.
Muitos optam por parar na metade, isto é, concluir apenas a
meia-maratona. Por isso, a quantidade de maratonistas diminui
sensivelmente, restando apenas os bravos guerreiros da competição
completa.
Volto a passar em frente ao Museu da Revolução. Mas agora
por volta do quilômetro trinta e dois. Então percebo que o mar
enfureceu-se de vez lá no Malecón. O vento sopra com uma ferocidade
atroz. A ressaca inunda toda a avenida, despejando uma
enorme enxurrada de água sobre os corredores. Com extrema dificuldade
enfrento todo o trajeto de volta, com um sem-número
de subidas e descidas.
Bem perto do final, por volta do quilômetro quarenta e um,
passo por um americano. Ouço claramente as reclamações exasperadas:
Goddammit, it hurts all over, my fucking legs! Tento animá-
lo. Mas sei que, nesta situação, não há nada a fazer, senão
arrastar-se com resignação até o pórtico de chegada. Que atravesso,
finalmente, com certo alívio!
Depois de ter corrido tantas maratonas, já não sinto tão fortes
emoções na chegada. Quando cruzo a linha, não choro e não
considero um clichê mencionar isto. O que sinto é um estado de
êxtase, uma sensação física de liberdade, provavelmente desencadeada
por reações hormonais alimentadas primordialmente pela
grande quantidade de endorfina.
No entanto, esta maratona em particular me emocionou profundamente.
Principalmente por estar aqui entre este povo tão
sofrido e tão alegre ao mesmo tempo. É por isso que, em provas
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como esta, não busco uma coroa de louros, tampouco procuro
bater o meu próprio recorde constantemente. Busco, sim, conhecer
as narrativas de vida dos corredores, os fatos históricos, a origem
das cidades por onde corro.
Dessa maneira, exaurido e entorpecido, sento-me no meio-
-fio. Com o corpo molhado, cabelos desgrenhados e a medalha no
peito, observo os basureros removendo alegremente a sujeira da
sarjeta e da área de chegada. Vejo alguns policiais em dupla admirando
os atletas que displicentemente vão e vêm. Os pedintes
que me estendem as mãos. E o condutor de charrete Lorenzo, que
se aproxima e quer apenas a amizade de um brasileiro. Vejo os
felizes retardatários chegarem estoicamente, com total satisfação,
estampando no rosto a felicidade por mais um desafio vencido.
Com toda esta atmosfera suave, inundada por um sol flébil
e morno de outono, lembro a minha frase preferida de Che: “As
tantas rosas que os poderosos murchem nunca conseguirão deter
a primavera.”
Deixo Cuba, portanto, carregado de emoções vivas. Penso na
América do Sul e em suas veias abertas. Penso ainda que, se atravessarmos
toda a América dita Latina em direção ao sul, veremos
os seus contrastes, os desertos, suas cadeias de montanhas, seus
campos verdejantes, e chegaremos ao fim do mundo. Um caminho
que o explorador europeu trilhou há séculos.

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